O Dia em que Sam Morreu

O Dia em que Sam Morreu dramatiza as escolhas éticas que definem o destino de seis pessoas que se cruzam nos corredores de um grande hospital. Nesse ambiente onde a higienização dos corpos parece ser regra geral, um olhar mais detido pode mostrar que o Belo é Podre, e o Podre sabe ser Belo. Qual a percepção desses personagens sobre o mundo e o tempo em que vivem, sobre as pessoas que conhecem, sobre o trabalho que fazem? Como permanecer limpo num mundo onde tudo pode ser relativizado, ou quando a vida muda radicalmente num estalo? É preciso tomar uma posição.

A ideia de ruptura, de uma ruptura violenta acompanha toda a peça. Uma ruptura com a memória, com a ideia de justiça, com a ideia de verdade pessoal. Essa ruptura violenta, que é quase imediatamente identificada à juventude (como a ruptura de Rimbaud, que abandonou a poesia aos 17 anos pra viver a eternidade na África), em O Dia em que Sam Morreu atinge a quase todos. Nossos personagens tentam não fugir das perguntas difíceis, ao contrário, quase que correm ao encontro delas. Falam o tempo todo de si mesmos, não dizem toda a verdade, conservam muito em segredo, mas se revelam em fragmentos. De um fragmento a outro.

Da mesma forma, a estrutura da peça também se revela, apresentando uma sucessão de reinícios, alternando as vozes dos protagonistas que nos conduzem nessa trama. Na primeira parte, Benjamin e Samuel nos levam ao jogo cru de posições claramente antagônicas, uma espécie de duelo entre o “eu sou o que eu sou” e o “eu sou o que me constitui”. Na segunda, Samantha e Arthur, tratam dos caminhos percorridos da juventude à idade adulta, dos sonhos às decisões práticas do cotidiano, da dúvida e do sofrimento da dúvida. Na parte final, Sofia e Samir mostram o jogo de maneira mais poética, questionando o peso e a medida das coisas. A nossa história vai e vem, se repete igual mas diferente, com cada um afetado pelas ações ou inações do outro. Virar à esquerda, à direita, seguir em frente?

Somos todos sós. Mas estamos todos juntos.

Paulo de Moraes (diretor e co-autor)

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Críticas

"O que de início chama a atenção é a grande capacidade que a peça tem de olhar para um conjunto de assuntos que vem assolando nossa famigerada consciência crítica, de um modo absolutamente direto, franco, sem falsos dilemas. O texto – denso, articulado, penetrante – recusa qualquer tentativa de soar engenhosamente isento, asséptico, frio em suas reflexões bem-pensantes. Antes, ele opta por mexer e remexer no senso comum que nos paralisa para, a partir desse estado de indignação um tanto quanto letárgico do qual dificilmente conseguimos nos livrar, ir nos comunicando aos poucos a ideia de ser possível desenvolvermos um sentimento de vibrante reação a tudo o que está aí. Mas não aquele tipo de reação moralista que invariavelmente deságua na “indignação farisaica” de que nos fala o professor Antonio Candido. Certamente que não. A criação dramatúrgica de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes nos convida a reagir contra o esgotamento da cota de humanidade que se pensava infindável no homem pela via de uma perplexidade embrutecida, sofrida, dolorosa, sim, mas tingida sutilmente pelas cores do lirismo e da esperança.

Em tempos desencantados como os nossos, em que uma mentalidade mediana – vaidosa por ser assaz pragmática e combater tão “inteligentemente” as velhas ideologias – insinua-se em todas as esferas do convívio social, tendendo a sublimar a vida real por meio de uma franca tendência à abstração e ao absoluto, O dia em que Sam Morreu apresenta a grande capacidade de confrontar o espectador com uma série de indagações com as quais ele se depara normalmente, levando-o a examiná-las de acordo com uma inteligência e uma sensibilidade francamente autônomas, cultivadas por seu próprio espírito crítico – nobre tarefa à qual o bom e velho teatro ainda é capaz de se lançar. Isto é, texto e encenação nos fazem acreditar que o fenômeno teatral constitua ainda um poderoso processo que leve o espectador, atravessado pela experiência da cena, a se tornar membro de uma sociedade de homens que sintam e pensem mais e melhor.

A direção de Paulo de Moraes consegue com notável inventividade converter as ideias que fervilham no campo dramatúrgico em símbolos de uma teatralidade das mais rascantes, acentuada de modo todo especial pela trilha sonora executada ao vivo. Tudo leva a crer que a palavra falada hoje, proferida em ambiente acusticamente harmonioso, esteja fadada ao fracasso por demandar de nós um tipo de concentração do espírito que não nos diz respeito mais. Assim, as falas dos atores precisam constantemente ser emitidas em ambiente sonoro distorcido e amplificado, a fim de se relacionarem com o modo usual da cognição contemporânea. Errática diante daquilo que consegue comunicar e contaminada por um estado permanente de espanto, a palavra aqui precisa se deixar acompanhar pela pulsão do rock. Não é inadequado afirmar, então, que O dia em que Sam morreu se configura em um recital ruidoso, alvoroçado, desarmônico.(Convém destacar na condução dessa atmosfera tão especial o ótimo trabalho dos músicos, liderados pelo maestro Ricco Vianna).

Os atores da Armazém Companhia de Teatro desempenham seus papéis com uma tensão criativa que plasma muito bem seus corpos (a preparação corporal é de Frederico Paredes e Rafael Barcellos) e suas vozes (Jane Celeste Guberfain é a responsável pela preparação vocal). Jopa Moraes constrói o instrumentador Samuel de modo muito convincente ao transformar a retórica um tanto quanto cerebral do personagem em expressão de pura enervação. Patrícia Selonk confere a Samantha uma intensidade dramática notável. Trata-se de uma atriz a quem Dioniso parece jamais abandonar em cena. Como juíza, saem de sua boca asseverações éticas incontestáveis; como uma mulher alquebrada pelo coração em processo de falência, sobram-lhe dúvidas, potencializadas pela máscara patética. Marcos Martins imprime ao ex-palhaço Samir uma aura de comicidade construída por meio de um pungente lirismo.O intérprete domina com rigor a execução física do personagem, sabendo explorar muito bem suas nuances burlescas, poéticas, ridículas. Otto Jr. transforma o Dr. Benjamin em uma figura fascinante – detestável pela arrogância que o afasta de nós, atraente pelo pragmatismo que nos aproxima dele. Lisa Eiras empresta uma carga de sensualidade muito bem calibrada a Sofia, explorando diversos matizes em sua interpretação que afastam o risco de a personagem se cristalizar em um tipo. Por fim, Ricardo Martins se desincumbe muito bem do Dr. Arthur, conferindo-lhe uma empatia muito natural, seja por ele soar bastante razoável, seja por demonstrar ter um bom coração – que, inclusive, o faz interceder tão naturalmente a favor de engenheiros presos e juízas doentes."

O que ainda mantém o homem vivo?
Welington Andrade (crítico de teatro, Revista Cult)

 

"Em tempos de confusão política, desregramento econômico, corrupção midiática..." É assim que o programa de O Dia em que Sam Morreu anuncia sua busca de saídas. Ou pelo menos a busca de um diálogo mais complexo, por meio do teatro, "sobre a sensação geral de que algo não está bem". Sobre a falta de ética, de maneira muito oportuna, em tempos de eleição. Não se trata de teatro político com resposta pronta, mas com perguntas conflitantes entre elas mesmas, nos diferentes ângulos para um mesmo evento: num hospital cheio, um jovem aponta uma arma para um médico corrupto, até sair o tiro.

Alternadamente, o espectador se vê no médico, no jovem, num palhaço com Alzheimer, em sua filha que faz de tudo para ajudá-lo, numa juíza que fura a fila de transplante. Maior ou menor, o desvio ético é reapresentado seguidamente, no cenário alegórico de um hospital, em que as escolhas podem levar à morte. Três personagens têm o nome "Sam" como diminutivo.

O grupo carioca Armazém, originalmente do Paraná, soma quase 30 anos sob a direção de Paulo de Moraes e suas opções formais vêm de longe. Mas as inquietações estéticas e éticas são paralelas ao que há de mais representativo no teatro global, caso do alemão Thomas Ostermeyer e seu "realismo capitalista", e têm igual impacto. The Day Sam Died, título com que foi apresentado há pouco no festival de Edimburgo, não foi premiada à toa pelo jornal "The Scotsman".

A estrela é a dramaturgia, originada coletivamente e escrita por Maurício Arruda Mendonça junto com o diretor. Com perspicácia, evita pistas fáceis e vai emaranhando o pensamento linear do público. A trilha sonora, com execução ao vivo, mantém a intensidade constante. Também as interpretações, mas uma em especial: Patrícia Selonk, como Samanta, incorpora intensamente o conflito de escolher entre a vida e a razão que tinha para vivê-la."

Dramaturgia é ponto alto em peça política
Nelson de Sá (crítico de teatro, Folha de São Paulo)


Ficha Técnica

Direção: Paulo de Moraes
Dramaturgia: Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes

Elenco:
Jopa Moraes (Samuel)
Lisa Eiras (Sofia)
Marcos Martins (Samir)
Otto Jr. (Benjamin)
Patrícia Selonk (Samantha)
Ricardo Martins (Arthur)

Direção Musical: Ricco Viana
Cenografia: Paulo de Moraes e Carla Berri
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Rita Murtinho
Projeto Gráfico: Jopa Moraes e João Gabriel Monteiro
Produção de Vídeos: José Luiz Jr., João Gabriel Monteiro e Ricco Viana
Fotografias: João Gabriel Monteiro, Mauro Kury e Juliana Hilal
Assistente de Direção: José Luiz Junior
Técnico de Montagem: Regivaldo Moraes
Preparação Corporal: Frederico Paredes e Rafael Barcellos
Preparação Vocal: Jane Celeste Guberfain
Assistente de Produção: Iza Lanza
Produção Executiva: Flávia Menezes
Produção: Armazém Companhia de Teatro


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