Angels in America

ROY– Você recebeu a bênção do seu pai antes de ele morrer?

JOE– Bênção?

ROY– É.

JOE– Não.

ROY– Ele devia ter dado. Vida. Isso é o que eles deviam abençoar. Vida.

(Roy faz um gesto para Joe chegar mais perto e se ajoelhar. Ele põe sua mão sobre a testa de Joe. Ambos fecham os olhos e desfrutam por um momento.)

JOE– (Mansamente)Roy... preciso falar uma coisa com você...

ROY– Fica quieto. Não fode com a mágica.

(Angels in America– Parte II – Perestroika, ato 4, cena 1. Tony Kushner)

 

Já é quase o final de Perestroika. “Não fode com a mágica.”

As narrativas fantásticas sempre foram apaixonantes. Histórias habitadas por seres maravilhosos, profecias sendo anunciadas, sonhos materializados, ancestrais fazendo contato, visitas ao Paraíso. Mágica, numa palavra.
As construções refinadas, de personagens trágicos, que – de forma quase atemporal – refletem os acontecimentos reais de um mundo devastado pela desordem, também sempre foram apaixonantes. 

Angels in America (escrita pelo genial Tony Kushner) é, talvez, o ponto mais alto de intersecção entre essas duas formas de construção narrativa em teatro. 
Abandonado e com medo, Prior, um jovem gay com aids, recebe a visita de um Anjo que tenta transformá-lo no profeta de um novo tempo.
Infeliz, solitária e movida a punhados de Valium, a mórmon Harper conversa com o Sr. Mentira, planejando viagens exploratórias à Antártida.
Também sofrendo com os sintomas da aids, o advogado ultraconservador Roy vê o fantasma de Ethel Rosenberg, que havia sido levada à cadeira elétrica por ele, nos anos do macarthismo.

O mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda pode retratar Angels in America como uma trama complexa, cheia de referências históricas pouco acessíveis, quase como se pertencesse a uma época e a um lugar excessivamente definidos (a Nova York da Era Reagan, quando a aids assola a cidade como uma epidemia). Mas por trás desse cheiro de realidade – com elementos tão crus como o abandono, o racismo, o ódio, o preconceito, o medo da morte –, os acontecimentos extraordinários inseridos na narrativa nos revelam um mundo carregado de novos sentidos, como uma invasão do inconsciente, de coisas que em nós foram reprimidas. “Não fode com a mágica.” 

O Anjo (a mágica) que vai se revelando aos poucos a Prior desde O Milênio se Aproxima, entrega ao profeta a Epístola Anti-Migratória. Deus abandonou o Paraíso, diz o Anjo. E Prior precisa levar a mensagem de que é o momento da humanidade parar de se movimentar, retroceder, cessar qualquer mudança,  fincar raízes profundas. Doente, desamparado, confuso, nosso profeta vai para as ruas, volta seu rosto para o mundo. E tudo começa a se misturar ainda mais. Todos os personagens, a princípio tão diferentes entre si, gays, mórmons, negros, judeus, fantasmas em vida ou na morte, vítimas e visionários, começam a se relacionar, trocando suas peles e se redefinindo. Movimento constante. Estamos vivos porque estamos em movimento.

Mas, afinal, há anjos na América? De que fala Angels in America?  Seu assunto é a própria vida e a persistência humana em lidar com suas desilusões, mesmo com o corpo em frangalhos ou o coração partido.

Paulo de Moraes (diretor)

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Críticas

"Em 30 anos de história, o grupo, que nasceu em Londrina e hoje está sediado no Rio de Janeiro, sempre se distinguiu pelo apuro no trabalho com os atores. É apoiada sobre esse alicerce que a encenação cativa o espectador. Dividindo-se entre sete personagens, Patricia Selonk se destaca, montando e desmontado cada uma das novas figuras com apenas simples trocas de figurino, diante do público. Cabem a ela papéis tão díspares, como o de um velho rabino, o da mãe do advogado mórmon e o de Ethel Rosenberg, fantasma de uma judia acusada de ser espiã comunista. 

Entre figuras fantasiosas e cenas de delírio, o texto conecta-se fortemente ao real trazendo menções a duas que, de fato, existiram – Ethel, que foi executada nos piores anos do macarthismo, e o jurista que influenciou em sua condenação, Roy Cohn. A interpretação de Sergio Machado para o advogado sem nenhum caráter responde por alguns dos mais interessantes momentos da obra, tanto em seus arroubos de soberba quanto em seu desamparo. É também observando esse personagem que encontraremos pontes bastante sólidas entre questões aparentemente superadas e a contemporaneidade. Roy Cohn, vale lembrar, foi não apenas advogado pessoal, mas também mentor de Trump. Nessa história, ambientada no longínquo ano de 1985, qualquer semelhança com o presente pode não ser mera coincidência."

'Angels in America' continua atual, mas difícil
Maria Eugênia Menezes (O Estado de São Paulo)


"A premiada peça de Tony Kushner 'Angels in America' logo chamou a atenção, no início da década de 1990, pela força com que consegue articular política, história e sociedade ao lidar com o tema da Aids. 
Junto ao drama particular de homossexuais vivendo a rápida disseminação da doença, a obra mostra a atmosfera moralista e conservadora na política dos Estados Unidos em meados dos anos 1980 moldando a sociabilidade do país. É um ambiente no qual o vírus, visto inicialmente como castigo divino à sodomia praticada pelos gays, encontrou condições não apenas biológicas mas também sociais para se proliferar.

Para dar conta desta mirada complexa, a montagem da Armazém Companhia de Teatro, dirigida por Paulo de Moraes, cria um mecanismo próprio de encenação. De modo mais ou menos constante, após o fim de cada cena, alguns dos personagens continuam no palco; ficam ali demarcando a permanência do acontecimento anterior e, assim, sugerindo conexões entre as histórias distintas contadas na peça. É uma estética de justaposição que faz com que nenhuma cena seja somente ela. Em outras palavras, os indivíduos solitários, fraturados e delirantes que povoam o texto ficam sendo partes de um todo social, estão conectados nessa grande máquina do mundo, conservadora e opressiva.

A cenografia sintética contribui para isso. Elementos simples ganham múltiplos significados e os espaços são sugeridos mais pela imaginação do que pela concretização realista dos locais onde as cenas se desenvolvem.
Toda essa mise-en-scène cria uma marcante sintaxe teatral para a dramaturgia de Tony Kushner. Coisa que não só preserva como ressalta a força reflexiva da palavra e a qualidade literária da dramaturgia. 
Mérito também de um excelente elenco que se aproxima com atenção e sensibilidade das fascinantes personagens de 'Angels in America' e não deixa que as incursões metafísicas da peça (seus anjos, sonhos e visões) se descolem da vida concreta que envolve toda a trama."

Montagem brasileira de 'Angels in America' ressalta qualidade do texto original
Paulo Bio Toledo (Folha de São Paulo)


"Pela primeira vez montada na íntegra no Brasil, a versão de Paulo de Moraes e a Armazém Cia. de Teatro para o texto 'Angels in America', de Tony Kushner, é um voo alucinante e abrangente que enumera as características mais cruéis de um império em franca decadência, uma espécie de Babilônia moderna que se alimenta de desmandos políticos e truculência econômica que se alastraria para o resto do mundo nas décadas seguintes e que regem os conceitos neoliberais até hoje, colocando um ponto final em todas as utopias revolucionárias nascidas nas décadas de 60 e 70.

Misturando personagens reais e fictícios, a peça abre uma discussão pertinente do destino da Humanidade. Na primeira parte (O Milênio se Aproxima), o autor sedimenta as bases para uma aproximação com o tema: a Era Reagan traz o conservadorismo republicano de volta para engrenar o retorno ao mítico sonho americano. De quebra, a peste: 20 mil pessoas contaminadas pela AIDS, 5 mil óbitos, pessoas invisíveis gangrenando pelos cantos. Como consequência natural, a homofobia, a intolerância, o medo, o preconceito, a morte.

A segunda (Perestroika) avalia o fim da polaridade ideológica. Com a derrocada da União Soviética no Leste europeu, o equilíbrio desce ladeira abaixo. E, como todo bom escritor sabe, sem um antagonista à altura, não há história que se sustente. Um protagonista solitário torna-se narcisista, embebeda-se de si mesmo e confunde conceitos.

Tony Kushner não se limita a ser apenas um dramaturgo, ele é mais do que isso, é um criador de Cosmos onde trafegam confortavelmente os personagens da trama propriamente dita, misturados com uma iconografia delirante de fadas paródicas, bruxas reacionárias, anjos burocráticos e toda uma legião de mortos e vivos que dão um sabor especial ao enredo.

'Angels in America' equipara-se aos grandes textos da Antiguidade grega ao colocar os dilemas da Humanidade sob o ponto de vista da mitologia e do surdo embate entre as leis do Estado e os almejos dos cidadãos. A América de Kushner de meados da década de 80 está num impasse: ou recebe a última pá de cal passivamente ou se prepara para retomar o rumo da democracia. No meio disso, os personagens se contorcem.

A realidade alterna-se com sonhos e alucinações de todo grau & calibre, abrindo comportas e alçando a peça a um nível filosófico poucas vezes visto nos palcos. A versão de Paulo de Moraes para este 'Angels in America' vale-se de recursos plásticos e cênicos que a transformam num espetáculo hipnótico e encantador de luzes e som. O texto é poderoso e delicado ao mesmo tempo, mais sugerindo que explicitando, e jamais cai na armadilha fácil do didatismo ideológico, seja na aproximação com a realidade factual, quanto na construção dos personagens, que é sinuosa e labiríntica, obrigando o espectador a garimpar (aqui & ali) fios condutores que possam arredondar significados e metáforas.

Portanto, é um reducionismo limitar a peça ao surgimento da AIDS nos anos 80 quando os gays foram estigmatizados por uma parcela conservadora que os elegeram a bola da vez. A peça é muito mais do que isso: ela esmiúça os rumos da política, tanto nos EUA quanto na Rússia; abre uma polêmica salutar sobre o choque entre a sociedade e um deus vingativo e furioso e principalmente fixa (sem meias tintas) a gênese do pensamento retrógrado que surgiu nesta década e que persiste até hoje.

Kushner foi hábil o suficiente para não convergir o foco exclusivamente para o problema da AIDS, utilizando-a como subproduto de uma doença mais endêmica, como fez Thomas Mann em seu caudaloso romance A Montanha Mágica. (Através dos internamentos em função da tuberculose, conseguiu mostrar que a Europa estava mais enferma do que se imaginava). No caso da AIDS, o famoso coquetel até que minimizou em parte os efeitos danosos, mas AZT algum conseguiu curar o mundo do vírus da convulsão social em que mergulhou depois da Era Reagan.

Os anjos fazem um jogo sujo de meio de campo, tentando apaziguar os ânimos dos que estão com a cabeça a prêmio diante de um deus mal-intencionado que insiste em lançar as chamas do castigo a uma sociedade que perdeu o rumo. Ao invés de mandar a bíblica chuva de enxofre ou infestação de gafanhotos, inventou uma nova peste, possivelmente reeditando os costumeiros rituais de purificação para separar o joio do trigo.

A equipe técnica é boa: Maurício Arruda Mendonça, Maneco Quinderé, Paulo de Moraes/Carla Berri, Carol Lobato e Rico Viana (respectivamente responsáveis pela tradução, iluminação, cenografia, figurinos e trilha sonora) contribuem sensivelmente pelo sucesso desta versão, um grupo de profissionais tão coeso & afinado que é impossível determinar onde termina o trabalho de um e começa o do outro.

O elenco é um caso à parte: Patrícia Selonk brilha em vários momentos, particularmente no papel de Hanna Pitt, na abertura hilária da primeira parte, e no cínico e discretamente vingativo fantasma de Ethel Rosenberg; Lisa Eiras (Harper Pitt) mostra que veio pra ficar, administrando um timing correto a cada cena, mas é Sérgio Machado quem dá o show no papel de Roy Cohn, um advogado escroque, homossexual enrustido, influente na política e que condenou à cadeira elétrica o casal Ethel e Julius Rosenberg, além de ter sido o braço direito do senador Joseph McCarthy, o responsável por ter submetido ao terror a América da década de 50 na famosa caça às bruxas de comunistas e simpatizantes. É currículo pra ninguém botar defeito. Um personagem difícil pela ambiguidade de sentimentos, ora no ataque, ora na defensiva, por vezes atirando pra todo lado, noutras se acovardando. Um paradoxo ambulante, com direito a chiliques, empáfia, brutalidade e grosserias de todo tipo.

Com uma habilidade nos recursos e profissionalismo incomparáveis, Sérgio Machado alterna poder e fragilidade, egocentrismo e amargura, mas seu personagem nunca demonstra arrependimento total. Provavelmente, faria tudo outra vez se fosse preciso, não necessariamente por causa de suas convicções, mas simplesmente porque não admite perder o prestígio. Acaba morrendo destruído pela AIDS sem vislumbrar uma saída honrosa da situação que o assola.

O resto do elenco mostra-se empenhado e simbiótico, desdobrando-se nos 24 papéis que a peça exige (entre principais e coadjuvantes). Jopa Moraes, Luiz Felipe Lepresvost, Marcos Martins, Ricardo Martins e Zéza (uns mais, outros menos) estão bem.

'Angels in America' é um espetáculo grandioso em todos os sentidos: tem cinco horas de duração, com uma bossa: pode ser visto de três maneiras: na íntegra (as duas partes, com um intervalo de quarenta minutos); só a primeira parte ou só a segunda, em dias previamente estipulados pela produção."

Um poderoso libelo contra um deus vingativo
Furio Lonza (Teatro Hoje)

 

"O vasto tema da solidão e dos embates do individualismo, caro à tradição dramatúrgica norte-americana, inundou a cena carioca, com a oferta de um vasto mergulho no desespero existencial contemporâneo. Paulo de Moraes, liderando o seu grupo teatral, a Armazém Companhia de Teatro, assinou uma montagem a um só tempo pungente, generosa e sofisticada de Angels in America. 

Patricia Selonk e Jopa Moraes contracenando em cena num texto de absoluta densidade humana foram um episódio da História do Teatro. Para algumas sensibilidades cariocas puristas, a montagm foi chocante por ter sido financiada por São Paulo."

Adeus teatro velho
Tânia Brandão (Folias Teatrais)


Ficha Técnica

De Tony Kushner

Direção: Paulo de Moraes
Tradução: Maurício Arruda Mendonça

Elenco:
Jopa Moraes (Prior Walter)
Lisa Eiras (Harper Pitt)
Felipe Bustamante / Luiz Felipe Leprevost (Louis Ironson)
Isabel Pacheco / Marcos Martins  (O Anjo + Emily, a enfermeira + Martin Heller + Mendiga)
Patrícia Selonk (Hannah Pitt + Ethel Rosenberg + Rabino Chemelvitz + Henry, o médico + Prior 1 + Velho Bolchevique )
Rainer Cadete / Ricardo Martins (Joe Pitt)
Sérgio Machado (Roy Cohn + Prior 2)
Zéza / Thiago Catarino (Belize + Sr. Mentira)
 

Iluminação: Maneco Quinderé
Cenografia: Paulo de Moraes e Carla Berri
Figurinos: Carol Lobato
Música Original: Ricco Viana
Videografismo: Rico Vilarouca e Renato Vilarouca
Preparação Corporal: Paulo Mantuano
Projeto Gráfico: Daniel de Jesus
Fotografias: Mauro Kury
Produção Executiva: Flávia Menezes e Isabel Pacheco
Direção de Produção: Patrícia Selonk
Patrocínio: Petrobras e Sesc
Produção: Armazém Companhia de Teatro


Turnê

São Paulo
Rio de Janeiro
Curitiba