Neva
Eu estava em casa assistindo TV, eu via sempre o noticiário, a pandemia ainda ocupava muito lugar na mídia, mas o que contava mesmo era a atmosfera cheia de ódio que pairava acima de nós. Nos últimos anos, uma nuvem de desesperança parecia ter resolvido estacionar em cima das nossas cabeças. Era difícil dar um primeiro passo. Era difícil pensar no que deveria ser dito. Porque teatro tem a ver com isso, com a vontade de dizer algo, algo que só eu poderia dizer daquela forma (e não é preciso ser nenhum gênio pra isso, só é preciso encarar o que se quer dizer como algo vital). Mas era difícil. De todo jeito, eu precisava voltar a criar, precisava voltar pro palco – esse lugar que eu habito há mais de trinta anos. E me lembrei de NEVA.
NEVA é uma peça escrita em 2005 pelo dramaturgo e diretor de teatro chileno Guillermo Calderón. Faz referência ao Rio Neva, um rio que atravessa a cidade de São Petersburgo, na Rússia. A peça de Calderón se passa na então capital do Império Russo, em um dia de 1905. Não em um dia qualquer, mas em 9 de janeiro de 1905, no dia que ficou conhecido como Domingo Sangrento, quando manifestantes que marchavam para entregar uma petição ao Czar, pedindo melhores condições de trabalho nas fábricas, foram fuzilados pela Guarda Imperial. A ação de NEVA, no entanto, se passa dentro de um teatro, onde um ator e duas atrizes que iriam se encontrar para ensaiar "O Jardim das Cerejeiras", acabam, meio sem querer, se abrigando do massacre que acontece nas ruas e que será o estopim da revolução que acontecerá posteriormente no país.
Uma das atrizes trancada dentro do teatro é a alemã Olga Knipper, primeira atriz do famoso Teatro de Arte de Moscou e que foi casada com o dramaturgo russo Anton Tchekhov. Sentindo-se incapaz de representar, depois da morte do marido por tuberculose acontecida há seis meses, e na tentativa de seguir vivendo – enquanto lá fora a cidade desaba –, Olga instiga Masha e Aleko a encenarem repetidamente junto com ela a morte de Tchekhov.
Quando eu comecei a pesquisa pra montagem de NEVA, vi muitas fotos do prédio que abriga o Teatro de Arte de Moscou e fiquei intrigado com a semelhança arquitetônica daquele lugar com a Fundição Progresso (no Rio de Janeiro). A Armazém Companhia de Teatro tem sede na Fundição Progresso desde 1999, lá é a nossa casa. E pensei que o elemento central de nossa montagem deveria ser essa casa, pensei que o teatro precisaria ser personagem. Não o teatro idealizado mas o teatro formalizado, a casa em forma de Fundição Progresso (ou de Teatro de Arte de Moscou). Olga carrega o teatro consigo, como se carregasse uma pequena mala onde guarda sua essência, o lugar onde tudo se ensaia, tudo se sente e tudo se recorda com uma emoção brutal.
Mas para que serve esse teatro (tanto esse ofício quanto esses edifícios) num momento de grande desassossego? Com um humor feroz, Calderón escreve sobre uma Rússia conflagrada politicamente no início do século 20, mas reflete sobre o seu Chile da década de 1970 e, talvez, sobre o Brasil desses anos obscuros, tempos onde “tudo é tão intenso que nem sequer se pode chorar. Tudo o que tem água está congelado, inclusive os homens”. Entre incertezas artísticas, o embate político entre as personagens oscila entre a afirmação da absoluta necessidade da arte (“Temos que fazer teatro. Temos que fazer uma peça que nos cure a alma.”) e da sua total irrelevância (“Pra que perder tempo fazendo isso? O teatro é uma merda. Querem fazer algo que seja de verdade: saiam às ruas.”).
O teatro político de Calderón encanta porque mergulha numa linguagem poética seca, cortante e num humor extremamente ácido. A partir de acontecimentos surpreendentes, no meio de muitas tosses e promessas vagas de amor, ele levanta perguntas muito provocativas. Perguntar bem, perguntar mais e melhor, esse é o teatro que me interessa.
Paulo de Moraes
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Críticas
" (...) um dos achados na escrita de Anton Tchékhov é a fluidez sobre o que entende por drama ou comédia, sem que ambos os gêneros fossem necessariamente estanques. Por isso o autor definiu A gaivota e O jardim das cerejeiras como comédias em quatro atos, apesar da densidade dos diálogos e monólogos nas respectivas tramas.
A direção de Paulo de Moraes lança mão desse ativo em razão das inúmeras transições às quais o elenco precisa sustentar voz, corpo e pensamento. Efeitos de luz, paisagens sonoras e microfones são os elementos mais mobilizados para instaurar o teatro dentro do teatro, a orgia pirandelliana. Inclusive nas horas ásperas, como na reconstituição da morte de Tchékhov. Ou na abertura ao humor em plena representação de um texto de Dostoiévski: aqui Bustamante encontra o registro ideal para induzir à ambiguidade a partir da ilusão.
Solos de guitarra, uma saudação a Gal Costa e a eloquência com que Selonk faz o meio de campo para a profusão de saídas e entradas nos mais distintos ambientes, discursos e temporalidade – sem que o trio arrede o pé do palco –, são algumas das resoluções desse trabalho erguido no ano passado, por meio de campanha de arrecadação na internet, ainda sob os reflexos da pandemia de Covid-19, essa que, a rigor, não acabou. Sabe-se que o vírus é competente em prover variantes.
Dessa forma, a apropriação de Neva pela Armazém conecta-se sobremaneira à identidade artística da companhia nascida em 1987, em Londrina (PR), onde logo adotou um barracão como sede, favorecendo a concepção multiuso do espaço cênico, e 11 anos depois migrou para o Rio de Janeiro, vindo a ocupar uma sala com pé-direito de quase sete metros na Fundição Progresso, o icônico centro cultural da Lapa. Evidentemente, as dimensões do Teatro Paulo Autran no Sesc Pinheiros são gigantes se comparadas à escala do espaço onde a montagem foi ensaiada e fez primeira temporada. A Armazém mostra-se calejada nessa transposição, dessa vez sem fazer uso da projeção de imagens, cabendo principalmente ao desenho de luz de Maneco Quinderé e à música de Ricco Viana as sutilezas e dilatações outras encarnadas por quem atua. (...)"
A Revolução Não Será Encenada
Valmir Santos (Teatro Jornal)
" (...) O texto de Calderón é forte & complexo. Como se sabe, o panfleto não passa de um reducionismo semântico. Existe o panfleto ideológico (que normalmente resvala em dogmas) e o político (que abre as comportas do humanismo social). No teatro, poucos conseguiram juntar essas duas vertentes com sucesso. Brecht é um e Calderón é outro.
Portanto, seu texto não é maniqueísta. Parte da arte para chegar ao engajamento político e vice-versa.
Neva tem um pouco de tudo: ao mesmo tempo que o elenco encena um texto de Tchekhov numa sala de espetáculo, lá fora, rola a maior carnificina. Não é um dia qualquer, mas 9 de janeiro de 1905, que ficou conhecido como Domingo Sangrento, quando manifestantes que marchavam para entregar uma petição ao Czar, pedindo melhores condições de trabalho nas fábricas, foram fuzilados pela Guarda Imperial. (...) É inegável que a atuação de Isabel Pacheco se sobressai, principalmente no monólogo final onde sua personagem vomita diatribes dos mais variados graus & calibres, vociferando em altos brados sua inconformidade com os tempos atuais e o que deve ser feito para recuperar a dignidade perdida da arte e do povo sob o tacão de um irrecuperável demente. (...)"
Como Montar um Teatro Político sem Perder a Ternura
Furio Lonza (Teatro Hoje)
" (...) E é através do incisivo monólogo final, ao se completar a sequencial e irreprimível tessitura direcional (Paulo de Moraes) e a funcionalidade performática de um luminoso elenco (Patrícia Selonk/Isabel Pacheco/Felipe Bustamante) que o dramaturgo Guillermo Calderón coloca em cheque a própria função do teatro:
'Quantas vezes pode-se dizer te amo e não te amo? Cansei. Quantas vezes se pode chorar e clamar por verdade em um palco? E ser mais realista e encontrar novos símbolos? Basta...Querem fazer algo que seja de verdade? Saiam às ruas e vejam a força simples da violência política' (...)"
A Verdade Cênica de um Metateatro em Campo de Guerra
Wagner Corrêa de Araújo (Escrituras Cênicas)
Ficha Técnica
Da obra de Guillermo Calderón
Direção: Paulo de Moraes
Tradução: Celso Curi
Elenco:
Patrícia Selonk (Olga)
Felipe Bustamante (Aleko)
Isabel Pacheco (Masha)
Interlocução Artística: Jopa Moraes
Instalação Cênica/Sonora: Paulo de Moraes
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Carol Lobato
Música: Ricco Viana
Maquete do "Teatro de Arte de Moscou": Carla Berri
Preparação Corporal: Patrícia Selonk e Ana Lima
Fotografias: Mauro Kury
Programação Visual: Jopa Moraes
Assistente de Produção: William Souza e Malu Selonk
Assessoria de imprensa: Ney Motta
Produção Local/São Paulo: Pedro de Freitas
Produção: Armazém Companhia de Teatro
Turnê
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